Sobre o amor e seus limites

Pouco preocupado com as novidades do cinema, apenas ontem, provocado por uma publicação também extemporânea de uma amiga, assisti “Love” (2015), de Gaspar Noé. Ainda impactado, resolvi transformar o choque em palavras. O que também me deu a oportunidade de resgatar anotações sobre um magnífico livro de Georges Bataille, “O Erotismo” (1957).

O filme de Noé tornou-se notório por causa das cenas de sexo explícito. Logo no início, abre-se aos nossos olhos a imagem de uma mulher sendo bolinada enquanto manipula o pênis e engole os dedos de seu parceiro. Mais tarde, em uma cena na qual somos quase convidados a participar, o homem ejacula na – e não diante da – câmera. Evidentemente, o filme flerta com a pornografia. Mas não é pornográfico. Talvez seja um filme erótico – ou sobre o erotismo. De todo modo, preciso dizer que o obsceno neste caso, ou seja, aquilo que está fora da cena, que não aparece imediatamente, é o tema deste meu comentário.

Murphy (Karl Glusman) é o protagonista. Um homem perdido entre o fim de seu grande amor com Electra (Aomi Muyock) e a vida familiar constituída a partir daí com Omi (Klara Kristin) e o filho do novo casal. Mas o que poderia ser narrado como típico romance ou drama erótico, concentrando-se nas ações e nos sentimentos das personagens, torna-se mais perturbante e provocador. E isso menos por causa dos corpos que mostra do que pelos conflitos psicológicos que revela. Narrado sob a tortuosa perspectiva de Murphy e seus atordoados pensamentos, “Love” é um mergulho nas densas profundezas do amor e do sexo.

Talvez possamos dizer, em outra sinopse, que o filme lida com o conflito de Murphy com seus próprios desejos. Acentue-se aqui a noção de conflito, discordância, contradição. Murphy destrói aquilo que ama, ele fode com tudo, sentindo-se terrivelmente atraído e culpado por isso. 

CRÍTICA: Love, de Gaspar Noé. Sexo duro, amor cru. | by João Silva Santos |  Jump Cuts | Medium

Em seu livro sobre “O Erotismo”, Bataille discorre sobre a dupla experiência, igual e contraditória, da interdição e da transgressão. Não se trata de uma interdição que elimina de uma vez por todas os impulsos, nem de uma transgressão que retorna a eles eliminando a interdição. Ambas coexistem. Aqui, diz Bataille, se esconde a energia do erotismo e também – pasmem – a energia das religiões: na permanente tensão entre aquilo que é negado e a negação da própria negação. Em tal experiência encontra-se a conciliação daquilo que é inconciliável: o respeito à lei e sua violação. Isto que parece incompreensível logicamente, enquanto objeto do pensamento – afinal, como posso ao mesmo tempo respeitar e violar a lei? – é ou pode ser vivido em nossa experiência interior.

Sem a interdição que elimina os impulsos, não haveria consciência – nem a ciência que pretende conhecer o erotismo. Mas este não é um movimento exterior. O limite não é posto de fora. Isto é percebido de modo mais ou menos claro quando quebramos uma regra e somos tomados pela angústia. Mas o fim da transgressão, seu sucesso, por assim dizer, ocorre paradoxalmente quando se mantém a interdição para gozar dela. Nas palavras de Bataille: “A experiência interior do erotismo solicita de quem a prova uma sensibilidade à angústia fundadora da interdição tão grande quanto o desejo que o leva a enfrentá-la.” Um dos elementos centrais do filme, na minha visão, é o fato de que Murphy não consegue manter-se neste lugar, entre a angústia e o desejo, a interdição e a transgressão. A tensão na relação com Electra é forte demais. 

Antes do colapso, a situação os imobiliza. Eles não trabalham. Electra é aspirante a pintora. Murphy, estudante de cinema. Mas nenhum deles realiza sua profissão. Esta posição intermediária e irresoluta é diversas vezes reafirmada no filme. Em uma bonita cena, na qual caminham por um cemitério, o casal está prestes a dar um tempo, encerrando ao menos provisoriamente seu relacionamento. Eles partem da constatação de que, juntos, não estão desenvolvendo suas capacidades produtivas. Ela não pinta, ele não faz filmes. Mas no mesmo caminho, ambos ignoram esta conclusão, prendendo-se novamente aos braços um do outro. O que se repete de maneira mais agressiva no decorrer do filme.

O trabalho, lembra Bataille, é o princípio das interdições que opuseram a humanidade aos seus impulsos. A artificialidade do trabalho humano transforma a natureza e reconstrói sua própria humanidade. Isto já havia sido dito antes. Bataille acrescenta a esta bem conhecida fórmula hegeliano-marxista a ideia de que a própria interdição tem limites. São esses limites, os limites do mundo do trabalho, que dão forma ao mundo do erótico e do sagrado. No trabalho, a humanidade dá limite aos seus impulsos naturais; e os limites do trabalho dão forma ao sagrado. É no dia de descanso que se praticam os ritos e as festas. “O tempo sagrado é, por excelência, a festa (…) o ponto culminante da atividade religiosa.”

Aqui se revela a unidade entre religião e erotismo. Bataille tem em mente a prática do sacrifício. Na violência que destrói o corpo do animal, derramando seu sangue, quebra-se a proibição da morte, ao mesmo tempo em que ela é afirmada. O rito ocorre dentro de certos limites. Neste espaço, e apenas nele, tornam-se sagrados o corpo, o sangue e o esperma. Justamente aquilo que Murphy quer colocar em seus filmes. Algo que me parece relevante, mas que não serei capaz de explorar aqui, diz respeito à própria natureza do seu trabalho. O cinema é fantasia, transgressão ou ao menos transformação da realidade. Mas, por alguma razão, Murphy é incapaz de criar, a partir do trabalho e nos limites dele, uma esfera sagrada no interior da qual possa lidar com seus impulsos. 

O sagrado, explica Bataille, designa ao mesmo tempo dois contrários. Ele é aquilo que não pode ser tocado e aquilo que é destruído, sacrificado. O que provoca tanto pavor quanto devoção, terror e atração. A interdição e a transgressão respondem a esses dois movimentos contraditórios, formando “um conjunto que define a vida social.” No sacrifício, que é deliberadamente organizado, assim como nos ritos orgiásticos, “o espírito humano organizou uma convulsão explosiva” cuja origem é a própria “existência das interdições que se opunham à liberdade de matar ou da violência sexual.” Mas agora a violência não é mais a pura liberdade animal. Ela assume “um sentido divino.” O divino refere-se aqui menos a uma religião do que à capacidade humana de operar essa transmutação. 

UNIVERSO DOS LEITORES: O Erotismo, de Georges Bataille

Não será fácil mostrar aqui a relação entre erotismo e religião. Só posso pedir ao leitor ou leitora que aceite, oferecendo como argumento não a autoridade do autor, mas a imagem do aniquilamento, presente tanto na prática do sacrifício quanto no ato sexual. Sem pretender reduzir o sexo a uma forma de violência, nem ignorar ou legitimar as terríveis e criminosas práticas de abuso sexual (sobretudo machistas), me parece inegável que ‘fazer amor’ envolve, além de uma dose de força e violação, a destruição dos limites egoicos que separam aqueles que ali se entregam. “Nesse momento, a personalidade está morta.”

Esta destruição é levada ao extremo na procriação. Nada disso é fácil de dizer nos limites deste comentário. Bataille leva ao menos três capítulos de seu livro para falar sobre a relação entre morte e reprodução. No filme, a hesitação de Murphy diante do desejo de ter um filho é uma forma de se prender à própria vida, não querer morrer. “A longo ou curto prazo, a reprodução exige a morte daqueles que engendram”. Quer seja nos casos concretos e imediatos do macho da viúva negra, do zangão e de certos marsupiais que morrem após o acasalamento; ou no caso do ser humano que passa a dedicar seu tempo e sua energia, sua vida, por assim dizer, a sobrevivência de outro ser. Por mais exagerado que isto possa parecer. No filme, Murphy não encontra a si mesmo depois da gravidez. Ele vive o próprio luto, a despedida daquilo que era sua vida até então.

De fato, a morte permeia o filme. Tanto na possibilidade de que Electra tenha se suicidado quanto no fato de que a vida que eles tinham juntos chegou ao fim. Em um momento muito revelador, quando Murphy pergunta se ela tem medo da morte, Electra responde que teme a dor. O modo como ambos reagem à separação é emblemático: ela desaparece; ele permanece. Enquanto ela aceita a morte, ele está preso na dor de um luto que não consegue viver.

Acima da polêmica, o que 'Love' apresenta é... o amor

Talvez Murphy não consiga dizer a verdade para si mesmo, assim como vacila para dizê-la a Electra. Ela também carrega suas contradições. A dinâmica entre o casal é perversa. Mas sabemos apenas o que se passa na tumultuada cabeça de Murphy. Os poucos momentos em que ele parece bem, na interação com seu filho, são aqueles em que finge o papel de pai. A narrativa, onde se revelam os diálogos do seu pensamento, é sempre vacilante e dilacerante. Os passos tortos e pesados de alguém que não sabe pra onde ir, mas é incapaz de parar.

Para mim, enfim, o filme parece argumentar sobre a importância fundamental dos limites. “O cuidado com uma regra é, às vezes, maior na transgressão, pois é muito mais difícil limitar um tumulto depois de desencadeado.” Não se trata do limite como simples interdição moral. Trata-se antes de um difícil jogo ou tensão constante entre a regra e sua violação. “É essencial recusar a violência do movimento natural, mas a recusa não significa ruptura, ela anuncia, ao contrário, um acordo mais profundo.”